domingo, 1 de outubro de 2017

O medo nosso de cada dia

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança". Paulo, em 1 Coríntios 13:11


Gostaria de falar com minhas breves palavras sobre um assunto que eu considero muito importante, pois penso ser um assunto que afete a todos, sem exceção. Todos vivemos em sociedade, todos temos uma grande ou pequena rede de amizades, todos ocupamos um lugar no espaço de modo que nos relacionamos com ele. Considerando isto, quero falar sobre o medo. Talvez possa parecer estranho o fato de eu começar o texto com uma referência bíblica e me proponha a falar sobre o medo, mas sem dúvida, logo fará sentido. Então, vamos lá.

Quando eu era criança, meus pais, com o objetivo de inibir certas atitudes típicas das crianças, me falavam da existência de "seres malvados" que estavam de olho na minha indisciplina prontos para me "pegarem", como punição por ela. "Papa-figo", "Velho do Saco", "Mula-sem-cabeça", entre outros, são exemplos destes seres. Não me lembro dos mais profundos detalhes sobre minha relação com estes monstros imaginários, mas de uma coisa, sem dúvida, eu lembro: eles me davam medo. Muito medo. Minha mãe sabia que este mecanismo não falhava, por isso, sempre deixava esta "arma" engatilhada.

Como toda criança, fui crescendo e perdendo estes medos iniciais. Passei a duvidar da existência destes monstros por que em alguns momentos eu já os desejava ver, para saber como eles eram, mas como nunca apareciam, comecei a pensar que de fato eram só conversa de minha mãe. Quando finalmente o recurso dos monstros falhou, outra coisa tinha que ser pensada para o lugar. Mas o quê? O cinturão! Sim, o medo foi deslocado dos fantasiosos seres para o factual cinto do pai! Embora ele nunca o tenha usado, a possibilidade de fazê-lo me amedrontava e, é claro, mantinha a disciplina.

Saliento que não sou contra a disciplina, nem contra a correção. São processos necessários para a formação do caráter de uma criança. Inclusive, atribuo aos meus pais a qualidade da educação que recebi, pois sempre me assistiram nisso, dando, na medida de suas possibilidades, todo o recurso moral e financeiro para a minha formação e de meus irmãos.

Pois bem, a infância passou, veio a adolescência. Não tinha mais medo do cinturão do meu pai, pois já alcançara uma fase da minha vida em que o diálogo e o entendimento eram a regra do jogo. Também já não era mais necessário, pois a disciplina caiu no meu gosto pessoal. Escolhi ser obediente e ser uma pessoa bem focada em ações para melhorar a qualidade do futuro, como estudar, por exemplo. O medo, contudo, estava lá. Pela segunda vez o medo foi deslocado: de seres míticos para o cinto do pai, agora do cinto do pai, para as pessoas. Sim, as pessoas! Um tipo bem específico de pessoas, é claro: as garotas.

 Quando eu tinha onze anos admirei por um ano inteiro uma senhorita da 5ª série "A" da minha escola (eu estudava na 5º "C"), imaginei como era sua voz, seu cheiro e até mesmo como seríamos nós namorando. Sim gente, eu tinha onze anos, brincava de boneco e de Super Nintendo em casa, mas na escola já queria namorar. Pois é, apenas queria, por que nunca, nunca mesmo, tive coragem de falar com aquela senhorita, pois tinha medo de ser rejeitado por ela. Me mudei daquela cidade e nunca troquei uma palavra sequer com aquela bela menina.

Com o tempo, vamos percebendo que o medo é nosso companheiro indesejado, mas necessário, às vezes. O medo nos inibe de tomar atitudes tolas das quais nos arrependeremos depois, mas também nos impede de arriscar por coisas que certamente valeriam a pena. Deixei de saber se poderia haver recíproca da jovem por conta do medo de ser rejeitado, mas também me protegi da trágica sensação de receber um "fora". Paradoxal, confesso.

Agora, contudo, quero deslocar minha análise para uma perspectiva mais cruel deste paradoxal sentimento. Nos dias atuais, eu e você, certamente concordamos com algo crucial: o medo no Brasil ganhou dimensões incríveis. Não tememos coisas espirituais, tememo-nos uns aos outros. Acordamos de manhã, olhamos ao nosso redor, para ver se estar tudo no lugar, pois alguém pode simplesmente entrar em nossa casa e levar tudo o que é nosso com incrível habilidade de não ser visto e sentido por ninguém. Enfrentamos o trânsito com medo de pessoas que por imprudência ou imperícia possam atrapalhar nosso dia e ainda gerar conflitos perigosos e indesejados. Se subimos no ônibus cheio, sofremos com o desconforto, se em um vazio, tememos por nossos celulares, bolsas e carteiras! Sem contar as ondas de arrastões nos pontos de ônibus logo ao amanhecer (contrariando a ideia do senso comum que criminoso não acorda cedo).

Os medos já relacionados são diários, são constantes, mas jamais únicos. Ligar a televisão no noticiário para mim é sofrível. Tantos desempregados, tantos mortos, tantos desabrigados. É uma dose de realidade tão intensa que me embriaga. Até o conhecimento da realidade circundante tem que ser dosado para não causar indigestão intelectual. Os políticos, os empresários, a corrupção, temas frequentes que amaciaram meu ouvido ao ponto de ameaçarem a fibra de minha sensibilidade. Às vezes prefiro não saber. Mas saber continuará sendo o fardo do intelectual.

Penso que na atual instabilidade em que vivemos, não ter medo não é uma alternativa. Contudo, penso também que ainda somos capazes de administrá-lo. Não somos mais crianças para temermos o que não conhecemos e também não devemos esperar soluções milagrosas para nossos problemas. Chorar, como uma criança, já não atrairá mais a atenção e a intervenção dos seus pais. Solicitar compaixão dos outros eu não recomendo. O que fazer então? Se colocar no controle. Sabe aquela planilha na qual você coloca todos os seus custos mensais, suas despesas? Ainda que venha estar no negativo, você estar no controle pelo simples fato de saber que está negativo e tem a oportunidade de elaborar medidas de ajuste, pois está diante do fato pura e simplesmente. Esta planilha é um exemplo. Não estou querendo dizer que devemos aceitar tudo que nos ocorre de bom grado, como bons fieis escravos da realidade, mas que devemos entender e controlar o que for entendível e controlável na nossa existência. Fazer isso jamais eliminará o medo, mas tornará ele parte do seu dia previsível, acerca do qual poderá planejar medidas mais efetivas. O medo é algo nosso, é o medo nosso de cada dia. Não devemos nos entregar a ele, mas devemos ter em mente que ele está ali, bem ali e não pode ser ignorado. Deixemos a visão de mundo de uma criança, de pensar como uma criança, de ser ingênuos. Abandonemos isso, pois como jovens e adultos que somos, já não teremos a leniência da vida, pois deixamos de ser coadjuvantes para ser protagonistas de nossa própria existência. Ponhamos na mente as palavras de Nietzsche (1844-1900): o que não me mata, me deixa mais forte.


Autor: Líniker Santana




4 comentários:

  1. Parabéns meu amigo pelo conteúdo.vc como sempre fantástico!!!

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  2. Podemos ter medo,mas não podemos ser covardes

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  3. Muito bom! Pois o medo é aquele sentimento que nos faz pensar duas vezes antes de tomar qualquer atitude.

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