terça-feira, 19 de março de 2019

A curiosa arte da lacração

Não é de agora que nós buscamos causar uma impressão positiva por onde passamos. Embora muitas vezes conseguimos exatamente o contrário, este esforço se mostra muito grande e dispendioso ao ponto de causar algum tipo de sofrimento. Além do mais, sustentar uma imagem de si diferente do que se é de verdade não é nada fácil. Mais cedo ou mais tarde uma pessoa que é admirada por outras pela boa impressão que passou, será confrontada por seu verdadeiro "eu" que, ao se manifestar, pode causar uma certa decepção no admirador.

Esse problema parece de uma ordem menor quando comparado ao que anda na moda atualmente: a lacração. A palavra, tomada fortuitamente de seu verdadeiro significado, está ligada, não ao ato de tampar ou impedir a saída de algo, como apresenta o dicionário, mas ao ato de "arrasar, causar, impactar". O termo, que é usado predominantemente pelos jovens, trata-se de uma expressão nascida no âmago da internet, o mundo virtual onde os jovens adotam identidades bem abertas, muitas vezes radicalmente distintas do que se é no chamado "mundo real" e se popularizou nas rodas de conversas nos intervalos das escolas, nos momentos de interação em shows, nas ruas, nos shoppings, etc.

A palavra em si e seu significado adaptado e ampliado não é um problema. O problema está na dinâmica do contexto juvenil e imaturo no qual ela se efetiva. Para refletir sobre isso é necessário fazermos a seguinte indagação: como lacrar e por que eles querem lacrar? Para responder a estas questões é preciso entender, grosso modo, como é a dinâmica do mundo juvenil atual. 

Primeiro, o universo juvenil é marcado pela noção de grupos. Os jovens se agrupam por afinidades, que vão de gostos musicas a youtubers preferidos. A convivência se dá por uma linguagem em que se deve perceber o gosto por aquilo que eles tem em comum. Por exemplo, se curtem o rock, as roupas, os cabelos e a linguagem devem refletir este gosto. A intensidade dessa vivência depende de fatores sociais, econômicos, educacionais e religiosos. 

Em segundo lugar, os jovens fazem comparações. Se comparam com jovens de outros grupos e tentam afirma-se de alguma forma, buscando sempre vender uma imagem de "descolado" e superior para despertar o interesse de seus "concorrentes". Vale salientar que isso só acontece quando um grupo rivaliza com outro e mutuamente se vêm como uma espécie de "ameaça".

É nas entrelinhas destes comportamentos que acontecem as lacrações. A prática de ações que causem algum tipo de impacto nos outros é vista como algo quase sagrado para muitos jovens. Gastam tempo (e muito) pensando numa forma de produzir novidades e lacrar na escola ou em outros lugares que julguem importantes. E o problema está que nem sempre o que fazem nesse sentido é bom para o ambiente onde estão e para si mesmos. Se para impactar e vender uma imagem é necessário violar uma regra, uma lei ou até mesmo uma vida, eles o farão. Há  um caso de jovens que para causarem no primeiro dia de aula, puseram uma bomba na privada do banheiro. O estouro aconteceu no silêncio das últimas aulas e gerou grande histeria. Muitos sabiam quem eram os autores, mas, no geral,  ficaram satisfeitos em terem presenciado uma espécie de "corajosa afronta" a ordem vigente. Estes jovens que colocaram a bomba na privada ficaram orgulhosos do que fizeram. Lacraram para o seu grupo. Venderam a imagem que são corajosos, que vão além. As meninas os querem. Os rapazes os orbitam. Ele são os grandes causadores.

O valor de uma lacração passa e logo o jovem que busca se afirmar com estas práticas tem que pensar em algo novo. De lacração em lacração o jovem vai se destruindo. Os seus admiradores passam, mas ele fica. Fica para trás, pois na essência para nada o que ele fez e gastou muito tempo fazendo, serviu, senão para seu prejuízo. É claro que existem formas consideradas menos perigosas ou até mesmo ingênuas de lacração: uma postagem irônica no Facebook ou Instagram, uma frase de efeito dita em momento oportuno, um "olhar fulminante", uma roupa ousada para impactar "as inimigas", um música que serve de indireta, etc, mas por serem assim, ingênuas, são consideradas desinteressastes.

A busca desenfreada para vender uma imagem, conquistar um território e causar impactos com coisas inúteis ou de utilidade duvidosa é algo que faz muito mal. Tira-se o foco de algo maior, sério e importante. Divertir-se e causar uma boa impressão são coisas boas e necessárias em muitos contextos, contudo são meios e não fins em si mesmos. São formas de alcançar algo maior. Devemos considerar a curiosa "arte" de lacrar um produto dos novos tempos, lembrando, porém, que sua maior motivação é algo bem conhecido no passado: a busca de uma imagem diferente do que se é, uma espécie de fuga de si.

Autor: Líniker Santana

8 comentários:

  1. Comparo resumidamente a "ação" de lacrar aos atos de protesto sem causa significativa. As "manifestações" têm somente o objetivo de criar uma imagem ou satisfazer o ego de quem as prática, devido ao destaque que posteriormente irá receber. Seria um "chamariz" uma forma de chamar atenção, pura e simplesmente para perpetuar um comportamento que demostra carência ou para se englobar na mesma esfera de outros que também reproduzem esses ações. É fazer fazer birra (ou fazer "doce") dos jovens com os recursos e "propósitos" efêmeros do século XXI. Ademais, ótimo texto, no aguardo dos próximos!

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  2. Espetacular essa abordagem sobre o termo "lacração" que lá internamente reflete aquela antiga "necessidade de aparecer", um narcisismo inerente a todos (aparecendo em maior ou menor escala). Repito, espetacular seu texto Lineker.

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  3. Meu amigo ao ler essa belíssima reflexão fiquei imaginado esse contexto numa performance... Seria muito bom apreciar essa reflexão através do teatro.
    O que acha?

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  4. Professor Liniker, mais uma vez abordou de forma simples e genial um tema atualíssimo e pertinente à realidade da nossa geração. Parabéns!!!!

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  5. Parabéns professor!! Gostei bastante do texto, pura realidade!

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  6. Gostei professor, garantiu mais um leitor!!

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  7. Talvez uma palestras sobre a (arte da lacração), seria um tanto interessante.

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