segunda-feira, 17 de junho de 2019

Nos sonhos tudo é possível

São cinco da manhã, o celular despertou. Ergo-me sem muito ânimo e ponho-me a conferir a hora na esperança de o aparelho ter despertado cedo para poder ficar mais algum tempo na cama.  Não deu, são cinco horas de fato, devo levantar-me.

Dando passos curtos e sem força, caminho para o banheiro e lavo o rosto. Vejo meu semblante de quem precisa dormir mais e convenço-me mentalmente que está na hora de conseguir um emprego que não me obrigue a acordar tão cedo. Acordar para mim é um sacrifício, mas não o maior deles. Eu diria que o maior dos sacrifícios é manter-me acordado, pois quando saio da cama e desperto, logo vejo que o mundo não é exatamente o lugar dos meus sonhos. 

Despertado e alimentado, abri a porta e saí de casa com muita atenção, guardei meu celular num lugar de minha cintura que o deixa imperceptível, engatei largos passos e segui para o ponto do ônibus. Passei muitos minutos esperando o ônibus, até que fiquei impaciente. Quando já estava preocupado com a hora de chegar na empresa, ele aparece com o seu interior bem escuro, já anunciando a sua superlotação. Ele parou, eu subi. Um esforço surreal para passar a catraca, mas consegui. Passei, pisei em pés alheios e tive os meus pisados. Encontrei um lugar onde pude ficar, ora sendo empurrado, ora sendo apertado contra o segurador do ônibus ao ponto de minhas bochechas ficarem vermelhas do atrito com aquele objeto. Nessa situação, o único estimulo que eu tinha era o de saber que após onze ou doze pontos, não subiria mais ninguém, pois o ônibus entraria na área urbana e agora só pararia para os passageiros descerem. 

Durante esta viagem nada desejável, mesmo parcialmente imobilizado pela falta de espaço, pude deixar os meus pensamentos bem livres. Refleti que, naquele coletivo, eu e as dezenas de pessoas que ali estavam não éramos mais pessoas, porém apenas coisas, objetos. Nossa individualidade fora reduzida a mero número, a mero genérico "passageiro" que alimenta toda uma cadeia de serviço que muito lucra a partir desta coisificação consciente. Para quê bons serviços, se de modo precário, munidos da necessidade das pessoas, tais empresas alcançam seus objetivos?

Desci, ainda lançado em meus pensamentos. Estava triste, pois sabia que, embora tenha chegado hoje, amanhã o enfrentamento é o mesmo. Uma luta na qual não se tem aparente perspectiva de vitória. "Por que deve ser assim?", eu pensava insistentemente. Cheguei na empresa, trabalhei o dia todo, fiz o que deveria ser feito, produzi o que deveria ser produzido. Qual homem-máquina, eu fiz a minha parte. Larguei. Fui embora.

O retorno - mais tranquilo - me possibilita o "privilégio" de sentar. Ao sentar e colocar os fones de ouvidos, mergulho na música que me conforta e me faz sentir a leveza que ela é capaz de produzir. Assim, asseguro a mim mesmo um deslocamento da realidade ao ponto de perceber o quanto estou preso em uma grande prisão sem grades.

Para ter esta percepção, nada há de artificial: apenas a música, o pensamento e a imaginação. Enquanto o contrabaixo suavemente produz os sons graves que palpitam meu coração e o saxofone faz delirar a minha alma, meus pensamentos, já entorpecidos pelo sono, conseguem ver o mundo que eu gostaria de ter com minha casa: um mundo em quem ninguém fosse coisa.

O choque com a realidade é o combustível para o sofrimento de cada dia. Por isso que o despertador sempre tem a minha desconfiança, pois quando acordo, tenho saudade do mundo que construo na minha mente e nos meus sonhos e insisto em não acordar. Nos sonhos tudo é possível.

Nos sonhos tudo é possível, assim como no mundo real. Sim, no mesmo mundo onde nos coisificam, nos reduzindo a meros genéricos, podemos construir algo melhor. Há, contudo, uma dolorida diferença: nos meus sonhos, nada além de mim, é necessário para construir um mundo melhor, já na vida real, aquela para qual voltamos todas as vezes que o relógio desperta, a mudança (para melhor) é uma atitude coletiva. 

Mas na possibilidade da solução também reside o prolongamento do problema: enquanto a coletividade para trazer um mundo melhor não é criada, não é construída, pela dificuldade de engajamento, a sensação de que este mundo é uma utopia continua a frustrar as pessoas e levá-las a levantar todos os dias com a sensação que estão em uma prisão, da qual jamais conseguirão escapar. 


Autor: Líniker Santana

14 comentários:

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    1. Obrigado Vitor! Volte sempre e deixe sua opinião! Abraço!

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  3. Parabéns pelo texto professor! Você é incrível! Um dos profissionais mais sério que conheço. Fantástico!

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    1. Obrigado! Agradeço pelo gentil reconhecimento. É um prazer escrever e poder ser útil aos meus amados leitores.

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  4. Excelente texto!!! Sonhei acordada com um mundo melhor, muito boa a reflexão!! Parabéns Liniker :)

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    1. Pois é minha nobre! Quem dera que os nossos melhores sonhos pudessem se concretizar a partir de nosso próprio desejo! Seria formidável e trágico ao mesmo tempo! :)

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  5. Não sei se foi o objetivo da narrativa, mas a conclusão me passou uma mensagem niilista. O ideal mundo nunca será nosso pôs necessitamos de outros para alcançar-lo. Abrir mão de sua individualidade para que seja possível a obtenção de um nadir comum. Em contra partida a prisão sem grades, imaterial em que se vive é um possível resultado dessa "poda" individual para o bem do coletivo. A proposta é bela, exalta um bom caminho. Mas o que fazer quando aqueles que deveriam garantir, que a troca de liberdades por direitos continuasse a ser uma boa escolha? Se limitar a lamentar-se sua situação sem perspectiva de mudança ou alavancar um levante de "insatisfeitos" para tentar mudar algo. Eis que a insatisfação é a força motriz da mudança, que intrinsecamente guia aqueles que a compartilham a um "lugar" comum, a sair da própria prisão ou apenas aprender a viver em "regime semi-aberto".

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    1. Excelente reflexão meu jovem pensador, Millikan! És um cara que tem uma sensibilidade intelectual incrível, um nerd raiz!

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  6. Nossa! Passei muito dos meus dias pensando em coisas do tipo, e, como muitas vezes o piloto automático guiá nossas vidas, de modo imperceptível (ou perceptível, mas é sempre mais fácil fugir da realidade, que a encarar frente a frente) e faz com que a gente nem perceba que estamos sendo "manipulados" e nos transformando em incríveis robôs humanos. Mas, é um ciclo ao qual temos que enfrentar diariamente, uma rotina, porém podemos dizer que estamos a "um passo a frente" por "conhecer" o que nos aprisiona. O texto é maravilhoso!

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    1. Pensar é um recurso que nos ajuda a perceber o mundo melhor. Obrigado pela reflexão, muito interessante!

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