Franz Kafka e a Ética Evangélica
Uma leitura
criteriosa da Metamorfose de Franz
Kafka, ilustre escritor do início do século XX, tcheco de nascimento, judeu de
linhagem, nos avizinha de uma situação que produz certo grau de repulsa em toda
pessoa de bom senso: a dialética da utilidade. Bom, de início devemos lembrar
que a Metamorfose, obra publicada em
1915, é uma ficção. A obra narra a transformação do personagem principal,
Gregor Samsa, em um grande inseto e as conseqüências oriundas desta
transformação. Gregor, um caixeiro-viajante, era o provedor da família, algo
que Kafka, com alusões diretas e em outros momentos menos diretas, reforça como
parte de sua obra que expõe ao leitor muito mais que uma ficção.
Em primeiro
lugar, devemos refletir sobre a localização de Gregor como provedor da família.
Já aqui encontramos uma inversão da ordem. Gregor era filho, e como filho não
lhe era papel primário sustentar a família. Neste sentindo, já podemos fazer
uma relação entre esta inversão de papéis e a contradição ocorrida nas nossas
igrejas, as igrejas evangélicas. Troca-se de lugar: o que deveria prover põe-se
a mercê da provisão daqueles que não possuem esta atividade como papel seu. Nas
igrejas evangélicas aquele que deveria alimentar é alimentado, aquele que
deveria cuidar é cuidado, aquele que deveria servir, é servido. Esta lógica
corrompeu a integridade do processo de provisão. E a semelhança não acaba por
aqui. Aquele que deveria ser o gerador
de renda da família, confortável com o fato de outra pessoa realizar tal
tarefa, desenvolve o sentimento de que esta inversão é natural. O pai de
Gregor, cujo nome não é citado na obra, estava acostumado com a vida que
levava, vida distante do trabalho e do suor. Igualmente, muitos pastores estão confortáveis
com a vida que suas ovelhas lhes rendem, distante do trabalho, distante das
preocupações inerente à provisão, distante do cansaço. O pai de Gregor, quando
de sua metamorfose, foi o primeiro e mais persuasivo interlocutor no sentido de
convencer o mesmo a sair do quarto (a família ainda não sabia da metamorfose).
Esta iniciativa aponta claramente para sua vontade de que as coisas
continuassem como estavam.
No desenrolar
da tragédia kafkiniana, outros episódios nos chamam atenção na obra. Quando a
família descobriu a situação de Gregor Samsa, instalou-se uma atmosfera de
terror e nojo. O mesmo foi ignorado até que sua irmã Grete lhe trouxesse
comida, com muito receio e medo, é claro. Já é possível fazer outro paralelo
entre Gregor e a ética evangélica. Aqui se esmiúça o princípio da utilidade.
Quando Gregor era o provedor, detinha atenção suficiente dos pais e da irmã,
pois ele era “útil”. Com sua “desgraça”, Gregor perdeu toda utilidade e se
tornou expurgo, indesejável. Nas igrejas, muitas pessoas, outrora “úteis”, caíram
em “desgraça”, foram metamorfoseadas. Outrora possuíam um bom emprego,
ofereciam bons dízimos e quando assim faziam gozavam de atenção especial. Basta
uma tragédia, uma que diminua ou suspenda o dízimo, por exemplo, e esta pessoa
já não gozará de primazia e atenção como antes. Esta lógica corrompida também
se verifica quando alguém diz não para algum “supremo pastor” acostumado com o
eterno sim de seus subalternos. Aquele que disse não, não terá mais a atenção
original. Seu prestígio depende de sua utilidade. A equação é: mais prestígio
ao mais útil, mais desprezo ao inútil. Claro, o termo inútil aqui é ambíguo,
pois a inutilidade para um destes supremos pastores pode não ser de fato
inutilidade.
Gregor,
cansado da escuridão e disposto a explicar aos seus familiares o que lhe
aconteceu, saiu do quarto por um momento. A imagem de seu corpo metamorfoseado
causou transtorno à sua mãe que desmaiou ao vê-lo. O pai, ao se inteirar da cena, munido de uma
maçã, feriu as suas costas, causando-lhe deficiência em parte do seu corpo. A
maça ficou-lhe encravada. Este gesto nos permite refletir sobre a interpretação
equivocada do pai de Gregor. Sua intenção jamais fora machucar a mãe ou
qualquer outro membro da família, mas explicar-lhes o que aconteceu. O Pai de
Gregor interpretou a ação como um ataque, e contra-atacou. Assim é nas igrejas.
Muitos pastores, munidos de suas incapacidades de interpretar os fatos como
são, contra-atacam diante de qualquer tentativa da ovelha metamorfoseada de se
explicar. Muitas desejam falar com o
pastor assim como Gregor queria falar com o pai, mas são atacadas com a maça da
repulsa e da intolerância. Quantos são excluídos do rol de membros por não
concordar com uma visão do supremo pastor? Ainda que tentem explicar por que
não concordam, são tidos como ameaças e por isso merecem a exclusão. Gregor
estava fadado à eterna escuridão de seu quarto. Muitas ovelhas estão fadadas ao
eterno desprezo de seus pastores.
Quando a
situação financeira da família começou a piorar, algo precisou ser feito. O pai
foi trabalhar. Kafka narra a história com muitos detalhes e aqui ele os combina
com muito mais elegância. Revela que o pai de Gregor, munido de um belo
uniforme, impecável como não se esquece de frisar, encontra trabalho e é conduzido
à provedoria da casa. Semelhantemente, muitos pastores, quando perdidos diante
da fuga de suas ovelhas, vão procurar novas formas de manter suas vidas
largamente inseridas em um bem-estar social que poucos têm. Nesta busca de
novas formas de angariar fundos, se vendem à ideologias furadas e
mercantilistas, burlando a Bíblia Sagrada e criando um “negócio evangélico”. O
interessante é que diante de tudo algo se revela com intensidade: o pai de
Gregor tinha vigor, embora alegasse não poder trabalhar para justificar seu
ócio ao filho. Muitos pastores poderiam encontrar saídas para diminuir a carga
de seus custos sobre a igreja mais não o fazem, pois acham natural a fórmula atual,
onde eles usufruem de plenos privilégios e a massa de irmãos padece de escassez
severa.
A dialética
da utilidade é, portanto, a visão das pessoas como mero produto que possui validade
e ocasiões específicas em que pode ser usado. Os “rebanhos evangélicos”, assim
como Gregor Samsa, personagem da Metamorfose
de Franz Kafka, só possuem valor enquanto puderem oferecer sua melhor lã, sua
melhor carne e a sua melhor gordura. Se em algum momento estes recursos rarearem,
os rebanhos não terão mais valor algum. Infelizmente o futuro da ovelha
explorada é semelhante ao de Gregor. A morte é o único horizonte no contexto da
dialética da utilidade. Gregor morreu e sua história acabou. Seu nome ficou
associado à metamorfose que sofreu, à desgraça que lhe ocorreu. Embora todo o
período em que foi o provedor da família tenha sido fundamental para a
existência da mesma, esta sua atitude bondosa não ficou associada ao seu nome.
Assim é com as ovelhas que caem em desgraça: a bondade de seus velhos tempos
não é associada de forma alguma aos seus nomes. Apenas a metamorfose.
É importante
lembrar que á ética da igreja não é a ética de Jesus. Enquanto que a igreja
(umas denominações o fazem abertamente, outras não) valoriza a aparência, o
possuir e o saber, Jesus abraça o homem com todas as suas limitações e imperfeições
e jamais lhe mede pelo que tem, mas pelo que é. A ética de Jesus é a ética da
verdade, da libertação, do amor, do perdão, da ajuda mútua. Ao contrário do pai
de Gregor e dos supremos pastores, Jesus nos acolhe nas metamorfoses desta vida,
nos abraça, nos ajuda, mesmo que nossa aparência esteja horripilante, mesmo que
não tenhamos mais nada a oferecer. É interessante como Kafka, quase cem anos
atrás, nos mostra o que não queremos ver.
Sabedoria não se trata apenas de aceitar e nos alimentar da opinião alheia, mas, quando possível, questioná-la ou incrementá-la a ponto de agregar real valor.
ResponderExcluirParabéns Liniker Santana!