sexta-feira, 29 de março de 2013

Franz Kafka e a Ética Evangélica


Franz Kafka e a Ética Evangélica



Uma leitura criteriosa da Metamorfose de Franz Kafka, ilustre escritor do início do século XX, tcheco de nascimento, judeu de linhagem, nos avizinha de uma situação que produz certo grau de repulsa em toda pessoa de bom senso: a dialética da utilidade. Bom, de início devemos lembrar que a Metamorfose, obra publicada em 1915, é uma ficção. A obra narra a transformação do personagem principal, Gregor Samsa, em um grande inseto e as conseqüências oriundas desta transformação. Gregor, um caixeiro-viajante, era o provedor da família, algo que Kafka, com alusões diretas e em outros momentos menos diretas, reforça como parte de sua obra que expõe ao leitor muito mais que uma ficção.
Em primeiro lugar, devemos refletir sobre a localização de Gregor como provedor da família. Já aqui encontramos uma inversão da ordem. Gregor era filho, e como filho não lhe era papel primário sustentar a família. Neste sentindo, já podemos fazer uma relação entre esta inversão de papéis e a contradição ocorrida nas nossas igrejas, as igrejas evangélicas. Troca-se de lugar: o que deveria prover põe-se a mercê da provisão daqueles que não possuem esta atividade como papel seu. Nas igrejas evangélicas aquele que deveria alimentar é alimentado, aquele que deveria cuidar é cuidado, aquele que deveria servir, é servido. Esta lógica corrompeu a integridade do processo de provisão. E a semelhança não acaba por aqui.  Aquele que deveria ser o gerador de renda da família, confortável com o fato de outra pessoa realizar tal tarefa, desenvolve o sentimento de que esta inversão é natural. O pai de Gregor, cujo nome não é citado na obra, estava acostumado com a vida que levava, vida distante do trabalho e do suor. Igualmente, muitos pastores estão confortáveis com a vida que suas ovelhas lhes rendem, distante do trabalho, distante das preocupações inerente à provisão, distante do cansaço. O pai de Gregor, quando de sua metamorfose, foi o primeiro e mais persuasivo interlocutor no sentido de convencer o mesmo a sair do quarto (a família ainda não sabia da metamorfose). Esta iniciativa aponta claramente para sua vontade de que as coisas continuassem como estavam.
No desenrolar da tragédia kafkiniana, outros episódios nos chamam atenção na obra. Quando a família descobriu a situação de Gregor Samsa, instalou-se uma atmosfera de terror e nojo. O mesmo foi ignorado até que sua irmã Grete lhe trouxesse comida, com muito receio e medo, é claro. Já é possível fazer outro paralelo entre Gregor e a ética evangélica. Aqui se esmiúça o princípio da utilidade. Quando Gregor era o provedor, detinha atenção suficiente dos pais e da irmã, pois ele era “útil”. Com sua “desgraça”, Gregor perdeu toda utilidade e se tornou expurgo, indesejável. Nas igrejas, muitas pessoas, outrora “úteis”, caíram em “desgraça”, foram metamorfoseadas. Outrora possuíam um bom emprego, ofereciam bons dízimos e quando assim faziam gozavam de atenção especial. Basta uma tragédia, uma que diminua ou suspenda o dízimo, por exemplo, e esta pessoa já não gozará de primazia e atenção como antes. Esta lógica corrompida também se verifica quando alguém diz não para algum “supremo pastor” acostumado com o eterno sim de seus subalternos. Aquele que disse não, não terá mais a atenção original. Seu prestígio depende de sua utilidade. A equação é: mais prestígio ao mais útil, mais desprezo ao inútil. Claro, o termo inútil aqui é ambíguo, pois a inutilidade para um destes supremos pastores pode não ser de fato inutilidade.
Gregor, cansado da escuridão e disposto a explicar aos seus familiares o que lhe aconteceu, saiu do quarto por um momento. A imagem de seu corpo metamorfoseado causou transtorno à sua mãe que desmaiou ao vê-lo.  O pai, ao se inteirar da cena, munido de uma maçã, feriu as suas costas, causando-lhe deficiência em parte do seu corpo. A maça ficou-lhe encravada. Este gesto nos permite refletir sobre a interpretação equivocada do pai de Gregor. Sua intenção jamais fora machucar a mãe ou qualquer outro membro da família, mas explicar-lhes o que aconteceu. O Pai de Gregor interpretou a ação como um ataque, e contra-atacou. Assim é nas igrejas. Muitos pastores, munidos de suas incapacidades de interpretar os fatos como são, contra-atacam diante de qualquer tentativa da ovelha metamorfoseada de se explicar.  Muitas desejam falar com o pastor assim como Gregor queria falar com o pai, mas são atacadas com a maça da repulsa e da intolerância. Quantos são excluídos do rol de membros por não concordar com uma visão do supremo pastor? Ainda que tentem explicar por que não concordam, são tidos como ameaças e por isso merecem a exclusão. Gregor estava fadado à eterna escuridão de seu quarto. Muitas ovelhas estão fadadas ao eterno desprezo de seus pastores.
Quando a situação financeira da família começou a piorar, algo precisou ser feito. O pai foi trabalhar. Kafka narra a história com muitos detalhes e aqui ele os combina com muito mais elegância. Revela que o pai de Gregor, munido de um belo uniforme, impecável como não se esquece de frisar, encontra trabalho e é conduzido à provedoria da casa. Semelhantemente, muitos pastores, quando perdidos diante da fuga de suas ovelhas, vão procurar novas formas de manter suas vidas largamente inseridas em um bem-estar social que poucos têm. Nesta busca de novas formas de angariar fundos, se vendem à ideologias furadas e mercantilistas, burlando a Bíblia Sagrada e criando um “negócio evangélico”. O interessante é que diante de tudo algo se revela com intensidade: o pai de Gregor tinha vigor, embora alegasse não poder trabalhar para justificar seu ócio ao filho. Muitos pastores poderiam encontrar saídas para diminuir a carga de seus custos sobre a igreja mais não o fazem, pois acham natural a fórmula atual, onde eles usufruem de plenos privilégios e a massa de irmãos padece de escassez severa.
A dialética da utilidade é, portanto, a visão das pessoas como mero produto que possui validade e ocasiões específicas em que pode ser usado. Os “rebanhos evangélicos”, assim como Gregor Samsa, personagem da Metamorfose de Franz Kafka, só possuem valor enquanto puderem oferecer sua melhor lã, sua melhor carne e a sua melhor gordura. Se em algum momento estes recursos rarearem, os rebanhos não terão mais valor algum. Infelizmente o futuro da ovelha explorada é semelhante ao de Gregor. A morte é o único horizonte no contexto da dialética da utilidade. Gregor morreu e sua história acabou. Seu nome ficou associado à metamorfose que sofreu, à desgraça que lhe ocorreu. Embora todo o período em que foi o provedor da família tenha sido fundamental para a existência da mesma, esta sua atitude bondosa não ficou associada ao seu nome. Assim é com as ovelhas que caem em desgraça: a bondade de seus velhos tempos não é associada de forma alguma aos seus nomes. Apenas a metamorfose.
É importante lembrar que á ética da igreja não é a ética de Jesus. Enquanto que a igreja (umas denominações o fazem abertamente, outras não) valoriza a aparência, o possuir e o saber, Jesus abraça o homem com todas as suas limitações e imperfeições e jamais lhe mede pelo que tem, mas pelo que é. A ética de Jesus é a ética da verdade, da libertação, do amor, do perdão, da ajuda mútua. Ao contrário do pai de Gregor e dos supremos pastores, Jesus nos acolhe nas metamorfoses desta vida, nos abraça, nos ajuda, mesmo que nossa aparência esteja horripilante, mesmo que não tenhamos mais nada a oferecer. É interessante como Kafka, quase cem anos atrás, nos mostra o que não queremos ver.


Um comentário:

  1. Sabedoria não se trata apenas de aceitar e nos alimentar da opinião alheia, mas, quando possível, questioná-la ou incrementá-la a ponto de agregar real valor.
    Parabéns Liniker Santana!

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